Tudo o que é diverso é invisível
Se pensa que as injustiças são uma mera criação do imaginário humano, preocupe-se. Esta não passa de uma das maiores falácias que já lhe incutiram. Se considera que as desigualdades e as discriminações são situações que se esgotam e explicam em si mesmas, atente que lhe estão, grosso modo, a esconder a realidade.
Ler o “Mulheres Invisíveis”, de Caroline Criado Perez foi, para mim, o despertar de muitos processos internos. E depois desta sessão, encontrei respostas que me encheram e tranquilizaram a alma.
O simples facto de se “ser mulher” (entenda-se, em quaisquer circunstâncias) carrega, em si mesmo, uma História. História essa onde imperam as desvantagens, as desigualdades, as opressões intermináveis e muito difíceis de desvendar na totalidade, qual novelo de lã cujos nós parecem infinitos e indesvendáveis.
Por força das minhas próprias condições de existência e pela Sociologia que carrego “por defeito”, foram muitas as sensações que me invadiram: um alargar de horizontes sobre as múltiplas vulnerabilidades femininas; um sentir que não estou só na invisibilidade; uma maior consciência sobre os enormes desafios que enfrentamos; a importância e a riqueza das partilhas entre pessoas que têm como denominador comum a busca pela justiça e equidade; um sentimento de esperança apaziguador que se sustenta numa “mudança social possível, urgente e em construção”.
Perdoem-me, agora, um certo “individualismo” e permitam-me alguma ousadia.
Sempre senti de muitas, muitas formas que represento, como todas as pessoas com deficiência – pelo menos corporalmente – o indesejável, o trágico, o negativo, o evitável, o dano, o defeito, o desmantelado, o disforme, o anormal. Represento um mundo limitado e, em última instância, uma quasi humanidade (existência legítima esta?).
Demorei muitos anos a compreender que o que represento para olhos alheios não é o que os meus veem. A par de tudo isto, sou mulher. Como tantas outras. E é aqui que tudo se torna cinzento, mas, em simultâneo, um lugar onde nascem infinitas conquistas e novos “mundos da vida”. Não esqueçamos o mar de possibilidades e desafios que representamos. Todas nós, sem exceções. E tenhamos em mente a invisibilidade que a todas nós persegue porque tudo o que é diverso é, inevitavelmente, invisível.
Gostaria de terminar esta reflexão com a partilha de um pequeno texto da minha autoria:
Olha-se ao espelho. O reflexo é límpido, fiel. Mostra quem quase não existe e teima em ser o que é. Aquela que ninguém quer. Aquela que é indesejada e cuja sensualidade nem sequer se supõe. Cujo corpo é deficiente, torto, deformado, desmantelado. Quando nua, desperta desconfortos e angústias (silenciados com uma mestria notável!) a quem lhe limpa e manuseia o corpo inerte, flácido, incapaz. Um corpo que nem lhe pertence e apenas lhe permite existir. Aquela que pouco serve, que não presta. Aquela que deve ser sempre doce e amável. E que na melhor das hipóteses será uma “boa amiga”. Aquela que será eternamente uma “menina querida e desafortunada” que a vida e o destino decidiram amaldiçoar.
E conforma-se. Aprendeu a ser o que fizeram dela.
Olha-se ao espelho. O reflexo é real, bem real. Mostra quem quase não existe e teima em ser o que é. Aquela que às vezes o cunhado quer, embora sem o seu consentimento. Para satisfação própria. Porque tem um corpinho apetecível e nunca se queixará a ninguém. Mesmo que se queixe, quem vai acreditar? Afinal de contas, não responde por si própria. Será eternamente a “tontinha” que não sabe sequer o que está a acontecer. Se não tem consciência que mal tem possuí-la? Até devia ser compensado pelo prazer que lhe dá.
E ela conforma-se. Aprendeu e limitou-se a ser o que fizeram dela.
Olham-se ao espelho. Os reflexos são belos, mas o silêncio quase quebra os vidros. Mostra quem quase não existe e teima em ser o que é. Aquela que é linda, mas não ouve e quando fala é com as mãos. Ou aquela que simplesmente substitui o olhar por uma escuta audaz. E ainda aquela cuja mente tem uma competência indiscutível, mas que a oralidade atraiçoa. Vive afogada num monólogo opressivo, dia após dia.
E conformam-se. Aprenderam a ser o que fizeram delas.
Não são esposas elegíveis. Não serão boas mães por tudo o que isso implica (se forem mães...). E vivem do mundo do “não sou” e “não posso”, seja qual for a circunstância. Estas são as mulheres incompletas, as mulheres metade.
29 de março de 2021
Ana Catarina Correia