No parlamento português, entre as bancadas dos deputados e a tribuna com membros do Governo, existe, exatamente a meio da sala, uma secretária sem nada à volta onde trabalham dois funcionários que têm a missão de transcrever tudo o que ali é dito. Através dos seus dedos, registam-se os discursos, as intervenções, os apartes, as insubordinações e até os gestos. São centenas de milhares de páginas que registam debates, assembleias constituintes, votações, avanços e recuos nos direitos sociais, laborais e humanos. “Guião para um país possível” é um espetáculo criado a partir destes registos, para contar os últimos cinquenta anos da nossa democracia.
digressão:
de 7 a 10 de dezembro, 2023 - Centro Dramático de Viana / Teatro do Noroeste
11 e 12 de janeiro, 2024 - Teatro-Cine de Torres Vedras
19 e 20 de janeiro, 2024 - Fábrica Ideias Gafanha da Nazaré (23 Milhas – Ílhavo)
17 e 18 de fevereiro, 2024 - Teatro Municipal Baltazar Dias
8 e 9 de março, 2024 - Teatrão (Coimbra)
15 e 16 de março, 2024 - Casa das Artes de Famalicão
23 de março, 2024 - Teatro-Cine de Pombal
12 a 15 de abril, 2024 - Teatro do Bairro Alto (Lisboa)
19 e 20 de abril, 2024 - Teatro Viriato (Viseu)
26 de abril, 2024 - Teatro Sá da Bandeira (Santarém)
4 de maio, 2024 - Casa Cultura Teatro Stephens (Marinha Grande)
10 de maio, 2024 - Teatro Municipal de Vila Real
18 de maio - Cineteatro Louletano (Loulé)
6 e 7 de julho, 2024 - Cineteatro Constantino Nery (Matosinhos)
13 de setembro, 2024 - Teatro José Lúcio da Silva (Leiria)
18 de setembro, 2024 - Centro de Arte de Ovar
26 a 28 de setembro, 2024 - Assembleia da República (Lisboa)
5 de outubro, 2024 - Teatro Municipal da Covilhã
11 de outubro, 2024 - Cine-Teatro S. Pedro (Alcanena)
18 de outubro, 2024 - Casa das Artes (Miranda do Corvo)
21 de novembro, 2024 - ACERT (Tondela)
15 de dezembro, 2024 - Ponto C (Penafiel)
Espetáculo disponível para circulação em 2024 e 2025.
Contactar: olacassandra@cassandra.pt
Apoio à residência
CRL - Central Elétrica
Residências
Teatro Municipal Baltazar Dias
Teatro Viriato
Residência de estreia
Centro Dramático de Viana - Teatro do Noroeste
Coprodutores
23 milhas
Casa das Artes de Famalicão
Centro Dramático de Viana / Teatro do Noroeste
Teatrão
Teatro-Cine de Pombal
Teatro-Cine de Torres Vedras
Teatro Municipal Baltazar Dias
Teatro Viriato
Projeto financiado por
República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes e Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril
Apoio à Criação
Abril é Agora
Alto Patrocínio da Assembleia da República
Agradecemos a Ana Castro, André Lacerda, Aurélia Barbosa, Carolina Mendes, Diana Sá, Elisabete Leão, Emanuel Pina, Fátima Alçada, Gonçalo Rebelo, Inês Fernandes, Isabel Pereira, Joana Mesquita, João Ferreira, José Soeiro, Maria Manuel Rola, Mariana Gomes, Miguel Barros, Patrícia Gonçalves, Pedro Santasmarinas, Susana Madeira, Biblioteca de Marvila, Clube dos Fenianos Portuenses, JB Cadeiras, Teatro Experimental do Porto e Teatro Nacional São João; à Assembleia da República Portuguesa, em especial Anabela Carreira, José Manuel Araújo, Joaquim Soares e Luís Silva; aos redatores e redatoras da Assembleia da República: Ana Joaquina Lopes, Ana Luísa Reis, Ana Rita Pereira, Cátia Sofia Almeida, Cláudia Sofia Antunes, Cristina Maria Gomes, Elsa Sofia Miranda, Helena Isabel Pimentel, Inês Maria Vila, Inês Fernandes, Isabel Maria de Campos, Manuel Moreno, Maria Fernanda Fernandes, Maria Helena Fernandes, Maria Paula Crespo, Maria Teresa Carvalho, Paula Maria Granada, Paulo Jorge Granja, Susana Isabel Pinto, Rosa Maria de Oliveira e Maria Emília Ribeiro; às autoras e autores, realizadoras e realizadores, jornalistas, fotógrafos, poetas, músicos e músicas que cultivaram a nossa memória democrática e nos ajudaram a percorrer esta história.
Dramaturgia e encenação
Sara Barros Leitão
Interpretação
João Melo e Margarida Carvalho
Desenho de luz
Cárin Geada
Montagem e operação de luz
Luís Ribeiro
Composição musical
Pedro João
Desenho de som e operação
Mariana Guedelha
Figurinos
Cristina Cunha
Confeção de figurinos
Emília Pontes e Domingos Freitas Pereira
Conceção de cenografia
António Quaresma e Susete Rebelo
Execução de cenografia
António Quaresma e Nuno Guedes
Execução dos telões
Beatriz Prada, Cristovão Neto e Nuno Encarnação
Direção de produção
Susana Ferreira
Produção e Comunicação
Mariana Dixe
Coordenação da pesquisa
João Mineiro
Apoio à dramaturgia e coordenação de Parlapatório
Carlos Malvarez
Interpretação em Língua Gestual Portuguesa
Joana Sousa e Pedro Oliveira
Fotografia de cena
Teresa Pacheco Miranda
Design
Marta Ramos
Produção
Cassandra
equipa,
coprodutores e apoios:
Eleito um dos 10 melhores espetáculos de 2024 pelo Ípsilon (escolhas de Gonçalo Frota, Inês Nadais e Mariana Duarte)
Sobre tudo o que lhe falta
Consigo identificar o dia exato em que este espetáculo surgiu em mim. Há sempre um momento em que a ideia para um espetáculo começa a tornar-se no próprio espetáculo, mesmo antes de se começar a fazê-lo. E, quando tal acontece, começa a ocupar-nos cada minuto do dia, entra-nos pelo banho, mete-se entre a água de lavar a loiça, interrompe-nos o sono, faz-nos falhar as saídas das rotundas.
Neste caso, foi a 25 de abril de 2022, quando assistia a uma conferência-performativa da atriz e investigadora Mariana Gomes sobre os discursos da extrema-direita. A Mariana passou-nos um discurso de um deputado português para analisarmos. Ao fim de poucas linhas, podia ler-se “Aplausos”. Mais à frente, o discurso era interrompido por uma voz, que diria “Muito bem!”, logo seguida de uma didascália que sugeria “Protestos”.
Foi então que me explicaram que aquele tinha sido um discurso proferido na Assembleia da República Portuguesa, e que o texto que eu tinha nas mãos era uma transcrição fiel e completa do que tinha acontecido, a que se chama Diários da Assembleia da República.
Bem diferente do Diário da República, onde se publicam as leis, os Diários da Assembleia da República registam tudo o que é dito, discutido, gritado, debatido nas sessões plenárias, incluindo os apartes de outros deputados, protestos de bancadas, interrupções de pessoas que assistem das galerias, e ainda breves descrições de ações que possam ser necessárias para se compreender, através daquele texto, o que terá sido determinada sessão. Um copo que se parte, um funcionário que desmaia, um deputado que faz um gesto insultuoso, grupos parlamentares que abandonam o hemiciclo. Todo este material é registado pelos redatores, que se sentam silenciosamente a meio da sala, e está totalmente disponível a consulta no site da Assembleia da República.
Nessa noite, a 25 de abril de 2022, apercebi-me de que tinha nas mãos um guião de teatro. Tinha personagens, tinha falas, tinha apartes, tinha didascálias, tinha conflito, tinha tudo o que uma boa peça deveria ter. E foi nessa noite que este espetáculo começou a nascer em mim.
Apesar de estas transcrições existirem desde a Monarquia Constitucional - e de estarem também elas disponíveis de ser consultadas - não podia ignorar que dali a dois anos se comemoraria os 50 anos desde o 25 de abril de 1974, que pôs fim a uma ditadura férrea, e que deu à Assembleia da República os poderes que hoje tem, e que tanto precisamos de preservar. Até então, a Assembleia Nacional tinha tão pouca importância que naquele dia inicial inteiro e limpo, esse não foi sequer um dos edifícios a tomar pelos militares. Conta-se que só dois dias depois se terão lembrado de passar por lá, que um militar terá batido à porta, e que os funcionários a terão aberto, gentilmente, e dito: “Há já dois dias que vos esperávamos”. Mas como a transcrição desta conversa não consta nos Diários, não posso prometer que foi exatamente assim.
Foi então que decidi que passaria os meses seguintes a ler a maior quantidade de Diários possível, desde o dia 2 de junho de 1975 - data da Sessão Inaugural da Assembleia da República, até aos dias de hoje - e que iria fazer um espetáculo a partir deste material. Queria descobrir como é que se poderia contar uma parte da história da nossa democracia, a partir de um lugar que é, também ele, uma conquista dessa democracia: uma assembleia plural, representativa, com eleições livres, onde podem estar representados todos os partidos, da esquerda à direita.
Durante o último ano, foram muitas as horas de leitura e de pesquisa. O contributo do João Mineiro, que coordenou esta pesquisa e que se tornou amigo e cúmplice, foi absolutamente inestimável. Durante essa primeira fase de levantamento de material, foram muitas as residências artísticas que fizemos, em várias partes do país, com longas maratonas de leitura e conversas, acompanhados pelo Carlos Malvarez, ator - e muito amigo também - que ia trazendo novas formas de olhar, de ler e de interpretar os textos e os acontecimentos, e pela Susana Ferreira - parceira desta vida -, que para além de produtora que nos assegura todas as condições para que possamos dedicar-nos ao trabalho, tem sempre um olhar atento e a incrível capacidade de acreditar nos projetos antes mesmo de mim própria.
Contrariamente a outros espetáculos meus, desta vez não assino o texto, mas sim a dramaturgia, pois decidi que não queria escrever uma única palavra minha. Dediquei-me a construir um espetáculo usando apenas o que consta nos Diários. Por mais incrível que às vezes possa parecer, nada do que é dito no espetáculo é inventado, e já foi, alguma vez, dito na Assembleia da República. Assim, estas são as primeiras palavras que escrevo sobre este espetáculo, até aqui, tratou-se de um trabalho de retalho, de costura, de corta e cose.
Propus-me colocar cinquenta anos numa hora e quarenta. Trata-se de um jogo de escalas ingrato e impossível. Todos os dias, sou assaltada pela sensação de que tudo lhe falta. Um rápido exercício para identificar tudo o que não tem, levará, certamente, o espectador a perguntar-se, o que será que tem, afinal? Se não, vejamos: não tem a aprovação do Serviço Nacional de Saúde, nem a entrada para a CEE, não tem referência à única Primeira-Ministra, nem à morte de Sá Carneiro. Não tem nenhum dos desastres que marcaram a nossa história: a queda do avião da TAP no Funchal, o grande sismo dos Açores, o acidente de comboio de Alcafache, a queda da ponte de Entre-os-Rios, o aluvião na ilha da Madeira, ou os incêndios de Pedrógão. Não tem as discussões sobre os milhares de retornados que chegavam a Lisboa, nem se assinalam as independências das ex-colónias, não tem a reforma agrária, nem o projeto SAAL, não tem o FMI nem a Coca-Cola a ser permitida em Portugal Continental, não tem as revisões constitucionais nem a privatização da banca, não tem o fim do Conselho da Revolução, ou as discussões sobre a despenalização do aborto. Não tem moções de censura, nem as maiorias absolutas daí resultantes, não tem o incêncio do Chiado, o início da TSF, ou os protestos dos Secos e Molhados. Não tem a doença das vacas loucas, a luta contra propinas, o PER, as auto-estradas, nem a morte de Alcindo Monteiro. Não tem o caso Casa Pia, o roubo de Tancos.
Guião para um país possível tomou a forma possível, encontrou o seu caminho, a sua estética e a sua dramaturgia. A partir deste material, poderiam ser feitos milhares de espetáculos. Este é o nosso.
Enquanto o criávamos, o Primeiro-Ministro demitiu-se, o Governo caiu. Depois de o estrearmos, morreu Odete Santos, o país entrou em campanha eleitoral. Enquanto estávamos em digressão, assistimos a uma reconfiguração da representação dos partidos na Assembleia da República e, ao dia em que escrevo este texto, ainda não sabemos os resultados das eleições nos círculos da Europa e fora da Europa.
Iremos fazê-lo por todo o país durante todo o resto de ano, quem sabe até mais do que isso? Nos próximos dias, será indigitado um novo Governo, que deverá tomar posse, talvez faça um orçamento retificativo, talvez voltemos a ir para eleições em breve. Sobre isso, nada sabemos.
Este não é um espetáculo-telejornal, não espere ver a realidade como ela é aqui retratada, porque, para isso, já aprendemos que a vida consegue surpreender-nos muito mais do que qualquer ficção, e não competimos com ela. Mas também não é um espetáculo-nostalgia, que viaja para um tempo que só existiu nas nossas memórias, em que tudo nos parecia melhor, mais ordeiro, mais calmo.
Dizem que a democracia não é “apesar de discordarmos”, é precisamente “a possibilidade de discordarmos”. É o diálogo possível entre forças que podem ser tremendamente opostas. É também espetáculo possível, aquele que conseguimos construir, aquele que, mesmo com tudo o que falta, nos continua a fazer sentido a cada dia que o voltamos a repetir para um novo público.
Porto, 17 de março de 2024
Sara Barros Leitão